8.31.2009

LÓGICA LÍQUIDA

Por Nicholas Petrus


“As visões epistemológicas das sociedades e os seus diferentes estágios de desenvolvimento histórico determinam as diferentes nuances da narrativa da água. Esta grande narrativa é, por sua vez, composta por diferentes discursos que se entrelaçam, como as religiões, a ciência e a tecnologia, a psicologia e filosofia, a cultura e as artes. Em determinados períodos e discursos, há uma predileção pela simbolização alegórica da água, representada por seus personagens e mitos. Outros já são marcados por um enfoque aparentemente mais objetivo, baseando-se na observação da água enquanto fenômeno”.
Hugo Fortes*


Entendo o projeto dividido em três núcleos distintos. A liquidez de cada um os torna similares, ou seja, cada núcleo necessita do outro a todo instante, e pertence ao outro ao mesmo tempo. Em todas as etapas a liquidez está presente, e em nenhuma é um conceito fechado. As obras e os artistas contém fragmentos do todo, e o conjunto é uma síntese e uma antítese, pois lida com as raízes da identidade e com o seu embate na formação de uma identidade no contemporâneo. Mesmo nas obras mais sutis, uma retomada arcaica fulminante pode aparecer em seus detalhes perspicazes, fazendo flutuar no instante presente, o conceito do tempo; na velocidade da luz, enfrentam-se em busca de sentido, a tradição e a própria condição transitória da “tradição” inserida no presente: memória e realidade, ancestralidade e futurismos, belo e apocalíptico, e etc., convivem lado a lado no que denominamos “contemporâneo”.


Este é um dos núcleos da mostra, a identidade. Surgiu do reflexo na água, depois de toda a paisagem composta e desenhada, não como um tema determinado a priori no processo curatorial. Com as gamas abertas e o espectro cromático projetado, a totalidade apontou a presença do próprio artista (e de algo imediatamente próximo e /ou inerente a ele) em quase todas as obras, conferindo à mostra, mesmo apresentando obras com soluções técnicas/estéticas tão distintas (pinturas, projeções, instalações, documentos e etc.), um caráter figurativo, da figura humana, do corpo físico situado nessa busca de um tempo e espaço coerentes e verdadeiros. Há uma umidade em toda expografia . O segundo núcleo aponta para fragilidades contemporâneas, como um copo mais que cheio, com a água já no limite da tensão superficial, justa a transbordar e molhar a mesa... Neste núcleo, as fronteiras (no sentido cartográfico enfatizado) artísticas tornam-se morais: limites territoriais são alcançados, e o que virá depois é terra estrangeira, portanto desconhecida. Há um risco, pois nunca se sabe quem vem em missão de paz ou de guerra, mesmo a trégua sendo a palavra de ordem... Artistas se manifestam pelos símbolos pátrios, pela sexualidade, pelo fetiche, pelo fetiche do consumo, pela academia, e etc., atravessando questões da sociedade atual que ainda situam-se entre a liberdade e a repressão, o conceito e o pré-conceito, a epistemologia e a vanguarda... O primeiro núcleo, de igual importância e também de uma poética muito intensa e diversa, se configura através da presença de elementos líquidos: da água, da viscosidade, do fluido, como matéria primária das obras selecionadas.


Os artistas navegam livremente nestes três oceanos, ora ancorando em um ponto, desembarcando em outro... Quem sabe querendo chegar também em um lugar distante e inexplorado...


A velocidade com que a sociedade se agarra à linha do tempo, manifestando no presente vontades e vocações passadas, se estilhaça em fragmentos tão pequenos que impede a consolidação de tradições. A mesma geração passa por hábitos e costumes tão ímpares e desassociados que, de certa maneira, não constrói uma base suficientemente estruturada para reproduzir uma tradição, o que ensinam e mantém como a “única tradição” é a transitoriedade.

Internamente o projeto buscou uma dinâmica que também movesse a mostra neste contexto efêmero, agregando novas obras, promovendo debates e encontros sobre arte e convidando o público para as performances regulares e as atividades de workshop. No intenso ritmo e inconstâncias temporais atuais, pouco a pouco a exposição foi terminando e brotando, começo e fim tornaram-se equivalentes. O jardineiro, tomando as palavras de Bauman, não deve pensar se seu trabalho tem fim, a beleza deve ser cultivada a todo instante, mesmo que para isso tenhamos de recorrer primeiro (e/ou simultaneamente) a plantas com muitos espinhos.


ZYGMUNT BAUMAN
Entrevista à Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke**

Uma das razões pelas quais passei a falar em "modernidade líquida" e não em "pós-modernidade" (meus trabalhos mais recentes evitam esse termo) é que fiquei cansado de tentar esclarecer uma confusão semântica que não distingue sociologia pós-moderna de sociologia da pós-modernidade, "pós-modernismo" de "pós-modernidade". No meu vocabulário, "pós-modernidade" significa uma sociedade (ou, se se prefere, um tipo de condição humana), enquanto "pós-modernismo" refere-se a uma visão de mundo que pode surgir, mas não necessariamente, da condição pós —moderna. Procurei sempre enfatizar que, do mesmo modo que ser um ornitólogo não significa ser um pássaro, ser um sociólogo da pós-modernidade não significa ser um pós-modernista, o que definitivamente não sou. Ser um pós-modernista significa ter uma ideologia, uma percepção do mundo, uma determinada hierarquia de valores que, entre outras coisas, descarta a idéia de um tipo de regulamentação normativa da comunidade humana, assume que todos os tipos de vida humana se equivalem, que todas as sociedades são igualmente boas ou más; enfim, uma ideologia que se recusa a fazer qualquer julgamento e a debater seriamente questões relativas a modos de vida viciosos e virtuosos, pois, no limite, acredita que não há nada a ser debatido. Isso é pós-modernismo. Mas eu sempre estive interessado na sociologia da pós-modernidade, ou seja, meu tema tem sempre sido compreender esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de sociedade que vem surgindo ao nosso redor; e a vejo como uma condição que ainda se mantém eminentemente moderna na suas ambições e modus operandi (ou seja, no seu esforço de modernização compulsiva, obsessiva), mas que está desprovida das antigas ilusões de que o fim da jornada estava logo adiante. É nesse sentido que pós-modernidade é, para mim, modernidade sem ilusões.

Diferentemente da sociedade moderna anterior, que chamo de "modernidade sólida", que também tratava sempre de desmontar a realidade herdada, a de agora não o faz com uma perspectiva de longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo está agora sendo permanentemente desmontado mas sem perspectiva de alguma permanência. Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade moderna: como os líquidos, ela caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades "auto-evidentes". Sem dúvida a vida moderna foi desde o início "desenraizadora", "derretia os sólidos e profanava os sagrados", como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente "re-enraizado", agora todas as coisas — empregos, relacionamentos, know-hows etc. — tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. A nossa é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições.


*Hugo Fortes é artista visual, designer, professor e pesquisador.
Como artista tem participado de inúmeras exposições, bienais, festivais e mostras no Brasil, Alemanha, França, Espanha, Dinamarca, Grécia, Armênia, Filipinas, Marrocos, Chile, Venezuela e Uruguai. Entre suas recentes exposições, destacam-se: Tierperspektiven, no Georg-Kolbe Museum, em Berlim, Nouvelles de São Paulo na ENSBA em Paris, Festival Loop Barcelona, Mostravídeo Itaúcultural, em Belo Horizonte e Vitória, da qual também foi curador, e Deformes Bienal Internacional de Performance, em Santiago do Chile.
É professor doutor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Possui Doutorado em Artes pela ECA-USP (com doutorado sandwich de dois anos na Alemanha), mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2000) e graduação em Publicidade e Propaganda pela Universidade de São Paulo (1989) .
Em 2007 foi vencedor do Prêmio CAPES de Tese, com o trabalho "Poéticas Líquidas: a água na arte contemporânea", considerada a melhor tese de doutorado em nível nacional na categoria Artes/Música . Foi bolsista de doutorado durante dois anos em Berlim, na Alemanha, onde atuou como docente convidado na Universität der Künste Berlin (Universidade das Artes de Berlim).

**Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é professora aposentada da Faculdade de Educação da USP e pesquisadora associada do Center of Latin American Studies, Universidade de Cambridge. É autora, entre outros, de Nísia Floresta, o Carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural (Hucitec, 1996) e As muitas faces da história (Unesp, 2000), editado também em inglês, The new history: confessions and conversations (Polity Press, 2002). Uma versão reduzida desta entrevista foi publicada na Folha de S. Paulo, caderno "Mais!", 19 de outubro de 2003.

No comments: